Dentre as tantas travessuras de crianças estão as inúmeras incursões no entorno de seu território, sempre à procura do inédito, do diferente, do místico.
Diferente não foi o dia em que aqueles que moravam às margens do caminho de ferro que levava a Porto União vieram nos contar sobre uma nova e grande construção que por aquelas bandas estava sendo erguida. E naquele nosso conhecido estilo de estreitas tábuas na horizontal encaixadas.
E mil perguntas e mil considerações sobre o que seria e para que fins serviria. Quando alguém ousou afirmar que seria um hotel, o amigo Véndoli (*), entendido na arte porque sua família era dona de um bem perto da estação do trem, foi argumentando que não seria possível. “Nem janelas na parte de cima tem…”, já ia afirmando.
Não demorou para que majestosas chaminés começassem a apontar para o céu, ao mesmo tempo em que corriam as notícias de que uma fábrica seria e haveria emprego para muita gente.
Mas o quê lá seria fabricado? Coisa pequena não para um prédio tão grande. Outra serraria não seria possível. O espaço era pequeno para comportar toras de imbuia e imensas máquinas de serrar. Não haveria espaço para empilhar madeira. Não ficava à beira dos trilhos. Não, uma serraria também não seria. Mas não demorou muito para que a curiosidade de minha vila ficasse saciada.
Juntos eles chegaram pelo trem que vinha do Norte. Eles, os homens que seriam os pilares da nova fábrica. Eram então, para nós crianças, seis vetustos senhores que se dirigiram, com suas bagagens, ao Hotel Mezger, anexo ao já famoso salão. E foram depois jantar no restaurante de minha mãe, ao lado da estação do trem.
Todo o equipamento para a instalação da fábrica havia chegado já por um trem de carga e guardado estava no armazém de alvenaria que ficava do outro lado da estação ferroviária. Já no dia seguinte à chegada dos seis vetustos senhores aquela mercadoria começou a ser baldeada para um caminhão que a transportaria até o local da fábrica. E, é claro, sob dezenas de esbugalhados olhos de crianças que lá estavam para tudo conferir.
Nos caixotes, escritas em letras garrafais, as recomendações expressas. Que o conteúdo era frágil. Que se manuseasse com cuidado. Que tal lado deveria ficar para cima. E, ansiosos, fomos acompanhando o caminhão. Mas a nossa comitiva teve que ficar do lado de fora da porta quando chegamos ao ponto de desembarque.
E a expectativa de saber o que continham aqueles caixotes, a curiosidade estampada na face de cada um de nós foi compensada pelas gentis palavras de um dos vetustos senhores, já de cabelo quase todo branco, nos garantindo que depois de tudo pronto, montado e em funcionamento, seríamos, nós, os estudantes, convidados para uma aula dentro da fábrica. Ele era o seu Canuto, o seu Joaquim Canuto, não sei se mineiro ou carioca, um dos técnicos responsáveis pelo produto final da fábrica.
O outro era o Adir, Adir Vilela de Andrade, um moço alto, muito falante que de cada quatro palavras pronunciadas uma era o indefectível “Uai”, o que caracterizava sua mineira origem. Era ele o Engenheiro Químico responsável pela droga que seria ali produzida.
Adir encontrou uma bela canoinhense, que se formaria na Escola Normal do Sagrado junto com minha irmã, Avani. Era a menina dos Wendt, a Lourdes, com quem se casou e teve uma filha aqui nascida também. Além de mais oito que viriam depois. Quando retornou ao Rio de Janeiro sua casa se tornou a casa e a pensão dos canoinhenses que para lá se dirigiam.
E tinha também um português, o Boaventura Vieira, ou simplesmente o Boa que encantou e se encantou por muitas raparigas da terrinha nossa. Eu o visitei, quando fui a um Congresso no Rio, em sua relojoaria, artífice que se tornara na arte de acertar as horas.
O Leônidas, que tenho certeza era só um apelido, porque jogava futebol muito bem e, ainda por cima, tinha a tez de um moreno bem escuro, da mesma cor que o famoso artilheiro da época, o famoso Diamante Negro. Era ele um dos técnicos encarregados da montagem e da revisão e manutenção dos equipamentos.
Alfredo era o capixaba que fincou raízes em nossa terra e aqui ficou até o final de sua vida. Casou-se com Zilá, que era amiga de minhas irmãs mais velhas. Carismático, líder espiritualista, tempos depois, já integrado na comunidade de Canoinhas foi eleito prefeito. Era o Alfredo Garcindo, que, logo de sua chegada entre nós, era chamado de Gracindo, pela semelhança de seu nome com a do grande ator das novelas de rádio de então.
E havia o chefe, claro. O diretor, creio. Porque ela era o José Alves Linhares, sobrinho de José Linhares, então Ministro do Supremo Tribunal Federal que, por três meses e alguns dias, assumiu a presidência da República após a derrubada de Getúlio Vargas em mil e novecentos e quarenta e cinco.
Eram estes os personagens que integravam a equipe mestra da produção da Cafeína, uma famosa droga tão necessária na composição dos analgésicos na época da segunda grande guerra mundial.
(*) Wendolyn Mezger.
Texto de Adaír Dittrich colunista do Portal JMais
À esquerda rua Celestino Leite, antiga rua da "Cafina".
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