Divagar em torno de um poço. Não o Poço de Jacó. Não o bíblico poço…
Divagar sobre um poço. Um poço que a mais pura e cristalina água, por tantos anos nos serviu. O poço cavado bem nos fundos do terreno onde ficava a nossa casa. Depois dele, apenas a parede do rancho que o cobria. E atrás do rancho, a valeta por onde escoava a água da chuva que do telhado escorria. A valeta para onde desciam as águas de todas as vertentes que do barranco mais acima vertiam.
Tinha a altura comum que um poço deve ter. A altura suficiente para que alguém nele pudesse colocar um balde de água. Um poço de formato circular. Circundado por tijolos. Em alguns pontos, onde o cimento que o revestia, já estava desgastado, pelo tempo e pelo uso, sua coloração vermelho-laranja despontava.
Não ficava a céu aberto. Era protegido por grossas tábuas de imbuia. Madeira que nem a umidade e nem o desgaste conseguiram deteriorar. Enegrecidas pelo tempo, sim. E a deslizar sobre esta cobertura, a tampa de correr. Que era empurrada para trás quando do poço se puxava a água. E que para frente tornava quando dele não se fazia uso.
As águas lá dentro pareciam escuras. Porque dentro de um rancho ele se situava. E a luz do sol sobre ele, diretamente, não incidia. Então um telhado de vidro, lá no alto, foi colocado. Para que pudesse mostrar toda a beleza de seu interior.
E as águas, lá no fundo, a refletir a cor das suas paredes. A cor dos tijolos de barro queimado. A cor esverdeada do aveludado musgo que nas paredes nuas se formava.
E estas águas cantavam. Eu ouvia o canto destas águas. Em minha infância murmuravam canções de ninar. Na adolescência, canções de amor e depois, canções de saudade.
Ao dormir, em muitos sonhos, eu me encontrava dentro daquelas águas, sentindo o frio do interior do poço, ouvindo as canções das gotas que, das paredes, pingavam sem cessar.
Lembro-me do tempo em que tirávamos água daquele poço, com o auxílio de uma manivela. Uma manivela assentada sobre dois fortes e grossos palanques, que, colocados, em posição vertical eram fortemente fixados nos lados de sua abertura.
Enrolada, e com uma ponta presa a ela, uma corda bem avantajada, quase um cordame. Na outra ponta, muito bem amarrado, o balde de água do poço. Sim, porque o balde de água do poço, era o balde de água do poço. Dele ela era despejada para outros baldes. Baldes que levariam o nosso precioso líquido para a cozinha, para a banheira ou para os tanques onde se lavavam as roupas.
Em um filtro de barro colocava-se a água que se bebia. Uma vez por semana efetuava-se a sua limpeza. Como rotina, apenas. Um quase nada a cobrir a suas velas. Um quase nada de resíduos impuros restava. Porque límpida, pura e cristalina era a água de nosso poço.
Sei que o poço era bem fundo mas a água vinha até muito perto de sua borda. Lembro-me que jamais passava de dois metros a superfície líquida na qual se mergulhava o balde. Às vezes, na dependência das chuvas, a distância ficava bem menor.
Ao lado do rancho havia um filete de água. Que vinha de uma nascente. Que, do alto do morro descia em sentido diagonal. E servia a todos os moradores daquela circunvizinhança. Em nosso terreno havia até um pequeno tanque, cercado com grossas tábuas, que represava aquelas águas. Havia água em abundância.
Um belo dia a manivela, sua corda e o balde que lá dentro mergulhava, foram aposentados. Fechada foi a abertura do poço. A água passou a ser puxada por meio de uma bomba manual. Facilidades em um tempo em que a energia elétrica era fornecida apenas nas poucas horas do período noturno, em nossa vila.
O uso desta bomba permitiu que se instalasse uma caixa de água. E todo mundo, em nossa casa, era obrigado a fazer seus exercícios diários, afim de manter sempre abastecido aquele depósito.
Exercícios que cessaram, quando, enfim, as linhas de transmissão de energia elétrica estenderam-se por toda o nosso território. Um pequeno motor acoplado a uma bomba por ele movida substituiu a força muscular.
E foi então que a benfazeja água circulou pelos canos e jorrou pelas torneiras recém instaladas.
Muito tempo depois percebeu-se que o cano por onde circulava a água dentro do poço precisava ser alongado. Aquela linda, reluzente e cristalina superfície líquida, não se encontrava mais ali, um pouco abaixo apenas de nossos olhos. A quantidade de água estava circunscrita a menos de um metro do solo onde repousava há dezenas de anos.
Além de começar a escassez, um odor nauseabundo já acompanhava aquele manancial líquido. E a água já não era mais tão límpida, tão cristalina. A limpeza das velas e do interior de nosso filtro de barro já era diária. E a cor das impurezas nele represadas era de causar espanto, tal a sujidade acumulada.
Passamos a usar água de outras fontes para o nosso consumo. Águas que se compravam em garrafões, vindas das fontes de águas minerais.
Novos residentes em nossa vila. Muitas casas no morro no entorno do filete de água que por sua encosta descia. Que da fonte lá do alto se abasteciam. Galinheiros, chiqueiros e esgotos domésticos construídos em cima do pequeno córrego que descia morro abaixo em nossa vila poluíram a que tinha sido cristalina e pura água.
Necessário foi descobrir-se, em nosso terreno, alguma nova fonte subterrânea. Havia, na época, pessoas especializadas nesta arte. Então chegou à nossa casa um construtor de poços, o seu Koch. E chegou acompanhado de um homem que pouco falava. Um homem que portava consigo um galho de algum arvoredo. Em realidade, uma forquilha. De pessegueiro, seria? Forquilha que aquele homem foi pressionando com as palmas das mãos. E assim ele percorreu todo o terreno em volta da casa. No ponto em que a forquilha mudasse de posição seria o exato local de uma exuberante fonte de água subterrânea.
Acreditando, piamente, no que fazia o homem que o acompanhava, seu Koch programou a perfuração de um novo poço. Que ficaria localizado bem debaixo da janela do quarto de meus pais. E mais disse o homem da forquilha. Que naquele local jorrariam quatro fontes.
E então começou a escavação. O início fora fácil. Terra fofa, já mexida. Ali era o local de um jardim. Cavando mais, o solo começou a mostrar-se mais firme. Eram as camadas do amarelo cascalho. Mais profundo tornava-se o buraco. E cada vez mais sólidas tornavam-se as camadas.
Por uma escada seu Koch descia. E já com um grosso cordão de couro, provido de muitas argolas, envolvendo a sua cintura. Pelas argolas ele passava uma corda que, na parte externa, bem no topo do buraco cavado, era preso a uma manivela. Que um ajudante controlava. Era este o equipamento de proteção que ele usava. E com outra corda, latões cheios do material ali cavado, iam sendo puxados do fundo do buraco.
Minha mãe, apavorada, pedia a ele que interrompesse o trabalho. Que haviam se enganado. Já haviam aprofundado tanto o buraco e nada de água. Maior ainda o susto quando apenas terreno pedregoso foi encontrado. Pedra ferro, dizia seu Koch. Onde as picaretas já não mais conseguiriam penetrar.
Mas, seu Koch, não sei se por teimosia, ou por acreditar fielmente no homem da forquilha de pessegueiro, forçou quebrar a rocha. Ele tinha suas artimanhas. Quando meus pais ouviram o som de uma explosão entenderam o que o exímio construtor de poços havia feito. Um pouco de dinamite, coisa mínima, garantiu ele.
Desceu uma última vez, até o fundo do poço, a fim de observar de perto o buraco que o explosivo ocasionara. E, quase voou escada acima. Imenso jorro de água lançava-se para o alto, vindo de quatro pontos distintos de dentro da rocha. Em minutos a água atingia a borda do poço. Límpida, pura, cristalina e reluzente água. De uma fonte que jamais deixou de fornecer a mais salutar água provada por mim na vida.
E o velho poço, lá nos fundos do terreno, que por dezenas de anos nos servira, teve toda a sua cobertura fechada por grossa camada de concreto. Sepultada fora a história de uma vida.
Escrito por Adaír Dittrich. Publicado no Portal JMais
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Antiga casa da família Dittrich onde foi construído o poço. |
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Foto: Everaldo E. Barcelos |