Era o Estafeta do trem a pessoa que trazia e levava as malas do correio. Não era um carteiro. Era o Estafeta. Não era um correio a cavalo. Era um correio em cavalo de ferro.
Seu Pires foi um deles aqui em Canoinhas. Em cima de uma pequena carroça, puxada por um cavalo só, saia ele de sua casa já de manhã cedo e ia até a agência do correio pegar as chamadas malas que eram grandes sacos de aniagem, fortes, de traçado espesso e grosso, herméticas, com largas faixas verde-amarelas em ambos os lados e de alto a baixo.
De lá seu Pires levava a preciosa carga até a estação ferroviária de Canoinhas e a transferia para a parte do vagão que era destinada ao Correio. Sentava-se em seu banco, puxava seu palheiro caprichado, o acendia e seguia com o trenzinho misto rumo a Marcílio Dias, onde aguardaria o trem grande que chegaria de União. E lá, na estação de nossa vila, retirava as malas do correio de dentro do vagão e as colocava na plataforma.
Enquanto aguardava a chegada do comboio que traria outra leva de encomendas para Canoinhas, seu Pires ia saborear um fresquinho pastel e tomar um gostoso e quentinho café no restaurante da Estação, o restaurante de Dona Nena, o restaurante de minha mãe. E era um prazer servir seu Pires, sempre alegre, sempre solícito, sempre pronto para levar e ou trazer alguma encomenda. Não era já tão jovem assim e sempre estava acompanhado do filho Tavinho, o Tavinho que só muitos anos depois ficamos sabendo que se chamava Otávio.
Na hora em que chegava o trem da estação de Porto União da Vitória, nome que para a Rede Viação unia as duas cidades, era aquela azáfama de trocas de malas. Saiam umas, entravam outras e seu Pires e Tavinho lá acomodando tudo enquanto o estafeta do trem grande almoçava. Trocas feitas, sino da estação avisando a partida, maria-fumaça apitando e o comboio, resfolegando, seguia rumo ao leste.
E o caminho de volta seu Pires então fazia.
De tarde, a mesma rotina se repetia, invariável, em todos os dias da semana e em todas as semanas do ano. À tarde o trem seguiria para União e tinha origem em Curitiba e São Francisco do Sul. O diferente era para pior. O atraso dos trens. Então seu Pires ainda almoçava e ou jantava no restaurante da estação. E nas noites de frio ele e outros ferroviários que no misto trabalhavam se enrolavam em suas capas sem mangas e se aconchegavam em redor do grande fogão da cozinha do restaurante ou em torno de uma fogueira do outro lado da linha do trem.
E quando seu Pires já não mais trabalhava, apareceu em seu lugar o seu Valfrido, que era Gonçalves e que vinha lá das bandas de Itapeba, local a cujo nome fui apresentada pelo amigo Francisco Péricles Pazda e que era a Colônia Vieira de então, a Major Vieira de hoje.
Seu Valfrido era uma pessoa que jamais dizia não.
- Seu Valfrido trouxe uma carta pra mim? –
- Estão escrevendo, estão escrevendo, logo, logo chegará. –
Mas porque estaria eu contando estes pedaços de histórias de nossos dois estafetas agora?
Porque deles eu guardo lembranças especiais de minha infância, de meus tempos de aluna interna no Sagrado Colégio.
Eram eles os portadores de uma encomenda semanal, que já se estendia desde os tempos em que minhas irmãs mais velhas internas eram. Semanalmente levavam e traziam uma pequena mala, de grosso couro e que continha preciosos guardados. Preciosos, pelo menos, os que chegavam até o internato. Todos os sábados seguia para casa a malinha com a roupa suja e usada no decorrer da semana e mais uma chorosa carta de saudade. E no meio da semana vinha o retorno, com ela abarrotada de roupas limpas, lavadas e engomadas, acrescidas de um pacote com balas, bolos e os pasteis e sanduiches feitos por minha mãe.
Nestas idas e vindas seu Valfrido, que morava no outro lado da rua do Colégio, ficou sendo amigo das Irmãs a quem também começou a trazer e levar encomendas.
E, num belo dia santificado, quando voltávamos de um passeio lá pelas bandas de Itapeba, deparamos com seu Valfrido na estrada acenando com a mão, como a pedir carona. Passáramos o dia na fazenda dos pais de uma colega e, exaustas de tanto comer e pular, regressávamos na carroceria de um enorme caminhão no qual bancos transversais foram colocados para nos acomodar.
E eis que, subitamente, um temporal nos surpreende. A lona era curta para tanta gente. E teríamos ficado totalmente molhadas não fosse o seu Valfrido, que, tirando sua enorme capa que ia até os pés a coloca sobre nós para nos proteger. E, segurando-a, como se fosse uma grande tenda, ficou ele, ali, a sorrir, em pé, estoicamente postado, como um grande guerreiro, recebendo todo o aguaceiro que vinha do céu, encharcando-o até a medula.
É de pessoas assim que a gente nunca esquece.
Eram eles os nossos estafetas, eram o correio de nosso cavalo de ferro.
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Madre Albertina, Irmãs Carolina, Paula, Cacilda, Leocádia, Amanda,
Nívea, Glicéria entre outras. |
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Colégio Sagrado Coração de Jesus. |
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Estação de Canoinhas. |
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Inauguração da estação de Canoinhas.
Fotos de Álvaro Uhlig. |