quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Distrito deixa de produzir manteiga

   "Quando em meados de fevereiro de 1992 estive na casa de Adolf e Adele Blanck, fiz uma das mais gratificantes reportagens de caráter histórico da minha vida profissional. A recepção foi das mais agradáveis. Um pingo de emoção: dona Adele era muito parecida com minha mãe! 
Seu Blanck fez questão de mostrar e ser fotografado com a velha mantegueira que por longos anos serviu para a produção familiar, ajudando na renda. Talvez o casal Blanck foi o último de Marcílio Dias a falar o dialeto da Pomerânia, hoje uma das províncias da Polônia. A reportagem foi publicada no jornal "A Notícia" aos 20 de março daquele ano (Fernando Tokarski)."
 
  Leiam a reportagem de Fernando Tokarski:
 
Canoinhas – No início do século, a pequena vila de Estação Canoinhas era um dos principais centros de convergência populacional da região em litígio entre o Paraná e Santa Catarina. A construção do ramal ferroviário entre Porto União e São Francisco do Sul, o florescimento da exploração da erva-mate e o início da industrialização da madeira atraíram para Estação Canoinhas imigrantes e descendentes de famílias germânicas. A partir da chegada dos alemães o lugar começou a crescer e a produzir diversos produtos típicos da culinária desse povo. Entre eles, a manteiga.
Na década de 30, em pleno vigor da era getulista, o nome da localidade, já integrada definitivamente ao território do município de Canoinhas, foi alterado para Marcílio Dias, numa homenagem ao marinheiro negro morto no genocídio do Brasil contra o Paraguai. Em 1963 a vila foi transformada em distrito. Nesse tempo, se espalhara a fama da manteiga produzida em Marcílio Dias, abastecendo a população de Canoinhas e até de outras cidades vizinhas.
A fama do produto era tanta que o distrito foi apelidado de “capital da manteiga”. O título, verdadeiro ou não, permanece até hoje na denominação popular. Serve para honrar as tradições do lugar e os políticos costumam usar em seus discursos e declarações quando querem atrair a atenção do povo.
Famílias inteiras, notadamente as de origem germânica, faziam da produção da manteiga uma atividade paralela às principais, quase sempre integradas à lavoura. As localidades circunvizinhas a Marcílio Dias também se dedicavam à produção de manteiga, vendida na estação ferroviária ou em Canoinhas. As famílias Hauffe, Schroeder, Wengratz, Liepke, Stolarski, Steilein, Goestmeyer, Ramthum, Todt, Blanck, Maia, Veiss, Moehr e outras eram fabricantes potenciais de manteiga, sempre produzindo-a artesanalmente com rudimentares mantegueiras, que ainda chamam de “butterfass”.
Hoje Marcílio Dias quase não fabrica mais o produto que lhe deu notoriedade. Só alguns produzem o suficiente para o consumo próprio. O agricultor Adolf Banck foi carroceiro durante 22 anos e nesse tempo transportou manteiga para Canoinhas, onde entregava o produto no ponto de revenda. Ele narra que algumas famílias chegavam a produzir até 20 quilos por semana. Em sua casa a quantia chegava a 12 kg semanais. Adolf e a mulher Adele ainda conservam a mantegueira que usavam há 40 anos. O lavrador não sabe estimar qual era a produção da comunidade, mas lembra que era possível encher grandes bacias a cada viagem à cidade. Em sua opinião, a decadência do preparo da manteiga teve como causa principal o aparecimento de empresas e cooperativas que compram o leite in natura produzido no distrito, utilizando-o para posterior empacotamento.
Arno Ramthum, de 60 anos, outro morador do distrito, tem a mesma opinião. Diz que os colonos preferem vender o leite, obtendo mais lucros. Também afirma que ao longo do tempo a estruturação das famílias, mesmo das de origens germânicas, foi sendo alterada. Acredita que os mais jovens não querem mais saber de manteiga. Sucumbiram à tecnologia e hoje são ávidos consumidores de margarina. Rampthum entende ainda que os preços da manteiga desestimulam a sua produção. Lembra que numa época uma consulta médica podia ser paga com apenas meio quilo de manteiga.
“Hoje são precisos pelo menos 10 quilos do produto para fazer uma visita ao médico”, compara. Blanck concorda com o seu vizinho e confirma que hoje a manteiga não faz mais parte da vida da população de Marcílio Dias: “Essa história de capital da manteiga é só conversa e para achar um quilo dela por aqui é difícil”.

Família gosta de manter tradições e bens

Adolf Blank é a memória viva dos tempos em que Marcílio Dias se orgulhava da quantidade de manteiga que produzia. Aos 86 anos, vive há 55 com Adele, de 80 anos.
O casal mora na localidade de Campo do Trigo a poucos quilômetros da sede do distrito. Ele pertence a uma primeira geração de descendentes de pomeranos instalados no Brasil. Os dois demonstram contentamento quando dizem que falam três idiomas: o português, que conversam com estranhos, o alemão e o pomerano, um dialeto germânico que eles mesmos fazem questão de dizer que é muito parecido com o idioma inglês. Os dois idiomas estrangeiros são utilizados entre a família e com conhecidos mais íntimos.
Adolf gosta de manter tradições e até bens familiares. Um arado adquirido por sua família há mais de 80 anos continua sendo utilizado, agora pelo genro Henrique Holzapfel, casado com Anilore, a única filha dos Blanck. Durante boa parte de sua vida Adolf tocava flauta e bandoneon em festas de vizinhos e amigos. Conta com satisfação que quando tinha exatos 70 anos plantou 70 mil pés de mandioca, usando apenas o seu velho arado e implementos rudimentares, além da ajuda de sua camarada.
Adolf e Adele contagiam pelo bom humor. Ao final da reportagem, aparece Anildore, que mora numa casa ao lado. Depois de um ligeiro diálogo entre Adele e a filha, elas começam a rir. Arnaldo Mews, um amigo que serviu de guia, depois traduziu. Anilore perguntara quem era o pessoal e o que fazia ali. Adele respondeu que eram sequestradores, mas ela pegara uma espingarda e agora estavam só conversando, com medo dela.
Na saída, usando seu português complicado, desculpou-se que a calçada ao redor da casa estivesse de despedaçando. “Mas também, quando ela foi construída não imaginávamos que iríamos viver tanto”.
Adolf e Adele, já falecidos.


Fotos: Fernando Tokarski

Antiga residência do casal no Campo do Trigo.

3 comentários:

  1. Lembro dessa casa que eu avistava da estrada, quando estudei no colégio agrícola em 1977.Marcílio Dias sempre me encantou pela sua gente e seus recantos.A história que acabei de ler é bem verdadeira e tão parecida com tantas tradições que o tempo foi fazendo desaparecer.

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  2. Casa de meus padrinhos de batismo, estive muitas vezes lá,linda a história deles. Madrinha Adela gostava de mostrar as fotos de família e contar suas histórias.. Muita saudade de tudo.

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