Aline era a minha irmã mais velha. Aline Tereza. Em homenagem à nossa Nonna. Nasceu na estação ferroviária de Três Barras, em 28 de junho de 1921. Sempre brincávamos que foram os rojões dos festejos da véspera de São Pedro e São Paulo que a acordaram no banhado das margens do Rio Negro, onde, entre juncos e aguapés dormia placidamente.
Meu pai era agente da estação daquela vila. Mesmo passados tantos anos do fim das tribulações do Contestado, ainda constava na Certidão de Nascimento que Aline era nascida em Três Barras, estado do Paraná.
Meu pai era agente da estação daquela vila. Mesmo passados tantos anos do fim das tribulações do Contestado, ainda constava na Certidão de Nascimento que Aline era nascida em Três Barras, estado do Paraná.
Ferroviários eram como ciganos. Rodavam de estação em estação. Foi assim que meus irmãos mais velhos pulavam de escola em escola quando eram pequenos. Estudaram com freiras que falavam línguas eslavas nas localidades de Dorizon, Paula Frontin e Mallet, estações que ficavam na chamada linha sul do Paraná. E aprenderam alguma coisa da língua polonesa. Ou seria ucraniana?
Depois que meu pai retornou para atender a estação de Marcílio Dias a família não voltou mais a ciganear com ele. Então todos foram estudar na Escola “São Bernardo’. Onde aprenderam alemão. Meus três irmãos mais velhos eram crianças poliglotas…
A esse tempo já éramos seis. O quarto filho já não viajou mais. Nem meu irmão mais novo e nem eu. Parece-me que papai permaneceu por muito tempo como agente da estação de Marcílio Dias. Mesmo depois que ele foi transferido para a estação de Jaguariaíva, no Paraná, foi sozinho. Minha mãe dizia que estava cansada de arrumar e desfazer mudanças. Que os móveis, quase todos, já precisavam ser trocados porque, de tanto ir e vir já nem se sabia mais qual teria sido o seu formato original. E ela já estava, também, envolvida com minha Nonna Thereza nas lides do restaurante da estação.
Quando eu nasci, minha irmã Aline já estudava no Instituto de Educação “Sagrado Coração de Jesus”, de Canoinhas, como aluna interna. Foram oito anos de estudos ininterruptos.
No decorrer deste tempo esmerou-se em aprender as mais variadas artes que as Mestras Irmãs Franciscanas repassavam às suas alunas.
Com Irmã Paula, a freira exímia das artes das linhas e das agulhas ela se aperfeiçoou em traçar os mais belos pontos de bordado, de crochê, de tricô e de frivolité.
Com Irmã Carolina, Aline sublimou-se nos teclados do piano e do harmônio. Foram anos intensivos em que por horas debruçava-se entre partituras e fazia passear seus dedos pelas teclas.
Foi com Irmã Ancila que aprendeu a misturar, em uma paleta, as cores dos tubos de tinta a óleo e a escolher o melhor pincel para colorir telas e mais telas que por anos enfeitaram as paredes das salas e quartos de nossa casa.
Aline era a minha irmã mais velha. Nuances de seu retorno à nossa casa vêm-me, às vezes na memória. Creio que Avany, que era três anos mais nova que ela, acompanhou-a no internato já no ano seguinte. Então as minhas lembranças são de ver as duas, saltando do trem misto que as levava de Canoinhas até a nossa vila encantada.
Elas enchiam a casa de alegria. Com os brinquedos que inventavam. Com as músicas que tocavam. Aline, ao piano e Avany, ao violino. E também porque muitas colegas delas apareciam lá em casa. E a casa explodia de tanta gente a correr por todos os lados.
Aline concluiu a Escola Normal, do Sagrado Colégio, em 1941. E logo foi nomeada para lecionar na Escola Isolada Estadual de Marcílio Dias. O início de sua carreira, como professora, coincidia com o fechamento da Escola Particular “São Bernardo”, que era uma escola alemã.
Aline concluiu a Escola Normal, do Sagrado Colégio, em 1941. E logo foi nomeada para lecionar na Escola Isolada Estadual de Marcílio Dias. O início de sua carreira, como professora, coincidia com o fechamento da Escola Particular “São Bernardo”, que era uma escola alemã.
Lecionava para os alunos do segundo e do terceiro ano do curso elementar. Em uma sala de aula, no mesmo prédio, em estilo Enxaimel, onde funcionara a Escola São Bernardo.
A professora Jusselina de Paula e Silva continuava dando aula para os alunos do primeiro ano na escolinha de madeira que, há alguns anos já, funcionava como escola estadual.
Fui aluna de minha irmã por dois anos. Dentro da sala de aula eu era igual aos demais. Era, talvez, mais rígida comigo do que com os outros. Ensinava-nos de tudo. Tínhamos aulas de ginástica e tínhamos aula de trabalhos manuais. Fios e agulhas para quem se interessasse e até trabalhos de serrinha para montar pequenas peças de madeira ela ensinava. E aula de música também.
A professora Jusselina de Paula e Silva continuava dando aula para os alunos do primeiro ano na escolinha de madeira que, há alguns anos já, funcionava como escola estadual.
Fui aluna de minha irmã por dois anos. Dentro da sala de aula eu era igual aos demais. Era, talvez, mais rígida comigo do que com os outros. Ensinava-nos de tudo. Tínhamos aulas de ginástica e tínhamos aula de trabalhos manuais. Fios e agulhas para quem se interessasse e até trabalhos de serrinha para montar pequenas peças de madeira ela ensinava. E aula de música também.
Algumas aulas que ela nos dava são inesquecíveis. Como aquela em que nos ensinou a mudança de nossa moeda do antigo Mil Reis para o Cruzeiro. Foi em 1942. Em seu primeiro ano como professora. Ela ouvira no rádio a notícia pelo Repórter Esso e depois no noticiário oficial que se chamava Hora do Brasil. Sem mesmo haver recebido a comunicação da Secretaria de Educação ela nos passou, com detalhes, como seria, a partir daquela data, a nova moeda brasileira. Que uma moeda de Um Mil Reis passaria a ser a de Um Cruzeiro. Logo que recebeu as orientações, desenhou, no quadro negro, todas as notas e moedas.
Nas férias ela foi a Curitiba onde adquiriu cadernos especiais para nós. Que não eram baratos. As capas vinham com desenhos coloridos de figuras ilustres de nossa pátria. Caxias, Almirante Barroso, Ruy Barbosa e outros mais. Na contracapa, a biografia deles. Eu adorava o cheiro daqueles cadernos. O triste era que deveriam ser encapados e não se poderia mais usufruir daquele colorido.
Não se falava em pizza ainda. Nossa origem italiana era do norte da Itália. E a pizza era napolitana, do sul. Então ela não nos ensinava frações tendo uma pizza por modelo. Usava um relógio. O quadro negro todo com relógios desenhados a demonstrar as frações. Inacreditável? Não sei. Mas no terceiro ano do curso elementar nós éramos exímios em frações simples.
Na ocasião do lançamento de “Meandros do Destino”, um livro de memórias de Dona Else Baukat, a nossa Frau Baukat, a parteira de Marcílio Dias, o filho mais novo dela, o Rolf, fez uma irrepreensível fala. Quando o parabenizei ele logo me falou: “Mas eu fui aluno da dona Aline. Tenho que saber falar corretamente”. Chorei.
Era severa quando deveria ser. E um anjo de doçura na maior parte do tempo. Ao tomar a leitura em sala de aula mandava repetir a frase inteira se não se fizessem as devidas pausas parciais nas vírgulas e as totais nos pontos. Tive de repetir tantas vezes a mesma frase, em certa ocasião, que comecei a chorar. Com ímpetos de atirar o livro para o espaço onde só os deuses poderiam encontrá-lo. Anos depois, quando eu já estudava em Curitiba, tanto nas sessões culturais do grêmio estudantil como depois nas do Diretório Acadêmico era eu sempre a escolhida para ler e falar. Quando agradeci a ela, por haver-me ensinado a falar e a ler corretamente, confessou-me que ela também chorou. Doía ser severa. Mas era preciso.
Passou, em certa ocasião, as férias inteiras de fim de ano, a fazer um curso de especialização em Educação Física, em Florianópolis. E retornou ensinando muitas artes a mais para os alunos de nossa vila. Tínhamos até cancha de vôlei, e a caixa de areia para saltos em altura e em distância.
Quando nos mudamos para Canoinhas ela passou a lecionar no Grupo Escolar “Almirante Barroso”. Em 1947 casou com o amor de sua vida. E passou a dar aulas no Grupo Escolar do distrito de Pirabeiraba, Joinville, porque era lá que seu marido, Waldemar Scholze, tinha um emprego em um cartório.
Foi por pouco tempo. Quando conseguem comprar o ponto e o estoque do posto de gasolina Atlantic, que ficava na esquina do Hotel Scholze, retornam a Canoinhas. E passam a morar em um quartinho nos fundos do posto. E Aline retorna a dar aulas no Almirante Barroso.
Nos anos cinzentos Aline conhece as salas de aula de todos os grupos escolares estaduais de nossa cidade. Porque a finalidade era desestabilizá-la, emocionalmente. Já contei os porquês em meu livro “Retalhos perdidos no Tempo”.
Além de sua especialização em Educação Física, fez uma minifaculdade em Matemática. Não sei como teve tempo e nem como conseguiu ultrapassar tantas barreiras. Ministrou aulas de matemática no Santa Cruz, no Colégio Agrícola, no Almirante e talvez, no Sagrado Colégio também.
Estava pronta para iniciar a faculdade em União da Vitória. Já tinha até passado no vestibular. Mas percebeu que sua saúde já não mais correspondia aos seus anseios…
Sua casa era sempre um colorido. Pelas flores que cobriam seu jardim em todas as épocas do ano. Pela algazarra jovial de uma plêiade de jovens que frequentavam sua casa para com ela aprender piano ou matemática.
Sua casa era sempre um colorido. Pelas flores que cobriam seu jardim em todas as épocas do ano. Pela algazarra jovial de uma plêiade de jovens que frequentavam sua casa para com ela aprender piano ou matemática.
Fez parte de tantas agremiações, círculos e associações que nem sei como conseguia colaborar com tanta coisa além de seu trabalho como professora e de cuidar com tanto carinho de seus cinco filhos.
Cantava no Coral Santa Cecília e era voluntária da Rede Feminina de Combate ao Câncer de Canoinhas. Guardo, com carinho, um cartão em que a mão que dos outros cuida foi por ela desenhada.
Fazia parte de nosso Centro Espírita. Sempre levava ramos de jasmim ou de camélias, de seu jardim, para que fossem energizadas pelos mestres espirituais. Para que cada irmão ou irmã ali presente levasse uma pétala consigo. Na última a que ela esteve presente levou cinco ramos com muitos botões de camélia. E o guia espiritual, ao energizá-las, disse que desta vez ela deveria levar todas para casa e entregar uma a cada um de seus filhos.
No dia seguinte embarcava no ônibus, sozinha, para a Ilha da Magia, onde seria submetida a uma grave intervenção cirúrgica. A sobrinha e afilhada Arcélia esperou-a na rodoviária e no dia seguinte levou-a ao hospital.
No dia seguinte embarcava no ônibus, sozinha, para a Ilha da Magia, onde seria submetida a uma grave intervenção cirúrgica. A sobrinha e afilhada Arcélia esperou-a na rodoviária e no dia seguinte levou-a ao hospital.
Eu estava em São Paulo, em um congresso. Era domingo. Tomei o avião de volta a Curitiba. De carro fui para lá. Ela estava tão animada. Fizera amizade com todos os pacientes da ala onde estava internada. Ela era assim. Num instante reunia as mais variadas tribos em seu entorno. Sorrindo ela entrou na sala de cirurgia. Sorrindo adormeceu.
O meu sobrinho Tico chegou, angustiado, no final do dia. Estávamos até esperançosos porque tudo parecia estar correndo conforme o esperado. A euforia durou pouco. Dias depois, na Unidade de Terapia Intensiva a evolução não era mais satisfatória. Entubada, mas lúcida, dava seus recados escritos. Na tentativa de amenizar suas angústias dizia-lhe que tudo logo passaria. Jamais esquecerei o que ela escreveu:
“Já pensou em trocar de lado?”
Creio que virei meu rosto para que ela não visse minhas lágrimas. Mas ela as sentiu. E escreveu:
“Não chore. Tudo será resolvido conforme os nossos merecimentos”.
Foi num repente que retornou ao Centro Cirúrgico. Uma reintervenção mais que emergencial. Na Unidade de Terapia Intensiva todos os cuidados e medicações heroicas não mais surtiram efeito. Seus órgãos mais importantes já não respondiam. E assim ela nos disse adeus. Tinha 67 anos.
Um ramo de camélia adornou a lapela da roupa com que a vestiram para voar, ao lado do Anjos, através dos páramos azuis.
Seu sorriso, sua força e vontade de viver e de ultrapassar todas as barreiras, sua espontaneidade, sua alegria entre seus filhos, suas flores, sua família e seus amigos permanecerão para sempre.
Escrito pela médica e escritora Adair Dittrich
Aline Dittrich |
https://www.jmais.com.br/aline-a-minha-irma/?fbclid=IwAR3gcTqRL_f3rWLR8Cnos-Mb3eOO2tvqNwQYEP-lps2_iXY8kAEOQnwnAqk
Nenhum comentário:
Postar um comentário