sexta-feira, 27 de abril de 2018

De vendavais e tornados

  Texto de Adair Dittrich

   Na lembrança de um vendaval encadeiam-se lembranças de outros. E das trágicas histórias contadas.

         Foi em algum ano do final da primeira metade do século passado que um espetáculo formou-se no céu do entardecer. Que foi visto, com um misto de êxtase e apreensão, pelas alunas internas do Colégio Sagrado Coração de Jesus, através da imensa janela do dormitório que ficava do lado oeste.

Era um céu de cobre que dominava todo o horizonte. E não apenas naquela costumeira nesga de crepúsculo, não. Aquele céu estava muito acima de qualquer altura imaginada para os últimos raios de um sol se pondo.

Era um crepúsculo belo e diferente. Um crepúsculo assustador. Ainda hoje um céu cobreado ao entardecer deixa em mim um laivo de angústia percorrendo o âmago.

         No dia seguinte a notícia que o mundo ficou sabendo. A tragédia. A destruição. A devastação. E o triste choro de órfãos e viúvos. O choro dos sozinhos depois do vendaval. Era “O Vendaval”. O Vendaval de Valinhos.

         Longe estava eu daqui, uns dez anos depois, quando recebi outra avassaladora notícia. Outro vendaval levara uma família inteira de amigos e colegas meus do tempo do Sagrado. Talvez de dimensões e consequências piores que o anterior. Foi o Vendaval de Santa Bárbara de Rio dos Pardos.

         E no rasto desta trágica lembrança volta à minha mente um outro fenômeno de ventos e chuvas que abalou a nossa vila de Marcílio Dias.

         Era uma tarde de domingo e eu recém voltava do hospital. Família reunida em frente ao receptor de televisão assistindo a um programa onde desfilavam os sucessos musicais da semana. E o cantor Toni Tornado cantava a sua música.

         E foi naquele instante que se ouviu mais que um rugido, um estrondo no espaço aéreo como se um Concorde estivesse passando já em cima de nossa casa.

         E fez-se a escuridão em plena tarde de domingo. Apagaram-se as luzes. Apagada a televisão. Apagado o mundo ao redor. Portas que se abriam com furor.

E logo mais, num instante, o rugido dos milhares de leões do espaço cessara. Retiraram-se as feras. Restou só o silêncio, apenas o silêncio, o silêncio só. Tumular silêncio. Os bichos calados. Nem pio de aves, nem trinar de passarinhos, nem cacarejar de galinhas ou cantar de galos, nem latido de cachorros, nem miar de gatos. O pasmo da natureza foi geral. Um silêncio devastador.

Tudo em uma fração mínima de tempo para uma lembrança que não se esvai pelo tempo afora.

Estáticos ficamos até que, num ímpeto, saímos para o jardim, para o quintal. A primeira visão de um enorme espaço vazio com todo o céu à mostra, bem a nossa frente, onde antes se erguia altaneiro e majestoso um imponente cedro. Um cedro que ali já se encontrava desde antes dos meus tempos conhecidos, um cedro que já era alto quando criança eu ainda era. Retorcido fora sobre seu eixo como se fosse um pescoço de galinha. Torcido e tombado sobre o portão. Da árvore altaneira restava apenas um tronco de menos de dois metros de altura.
 
Outras árvores foram arrancadas com suas raízes profundas e jogadas mais adiante. As cercas divisórias com a vizinhança estavam todas no chão.

Depois de minutos que pareceram horas ouviram-se vozes. Vizinhos falando alguma coisa sussurrada.

Não foi uma tragédia que ceifasse vidas humanas. Não se falou de feridos também. Os prejuízos, que foram imensos, limitaram-se tão somente aos materiais.

Telhados sugados pelo vento do imenso cone invertido que, girando em espiral e rugindo em velocidade quase supersônica, eram largados em cima de telhados vizinhos.

Algumas casas, de estruturas mais frágeis, desabaram. Outras, mais antigas, perderam a sua verticalidade, saíram do prumo, ficaram sem o seu eixo.

Fomos depois até o Grupo Escolar. Minha irmã Avany era Diretora do Manoel da Silva Quadros e estava preocupada com o que lá poderia ter acontecido. Encontramos as portas da sala dos professores escancaradas. Deparamo-nos com um lastimável estado geral, com livros e cadernos que deveriam ter voado em redemoinho e assim em espiral estavam deitados e espalhados pelo chão.

E, bem à vista, ali, no assoalho molhado, em primeiro plano, o primeiro livro que se ofereceu aos nossos espantados olhos, assim, mais que a sorrir, a rir com seu título como se fora “un grand finale”:

       “Como se formam os tornados”.

Este texto faz parte do livro “O Meu Lugar”.
Proibida sua reprodução no todo ou em parte sem a autorização da autora.
Casa da família Müller de Marcílio Dias atingida por um tornado.


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