terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Ferrovia tinta de sangue…

     Era o trem que nos levava para as viagens de sonho, para as viagens encantadas, para os portos onde se encontravam as fontes de nossas aspirações, onde se encontravam os lugares onde saciaríamos nossas mentes…
 
Mas, saber que alto fora o preço, em sangue derramado, para a colocação desses dormentes e desses trilhos por onde passaria o trem de ferro foi o choque maior que abalou o que de mais terno existia dentro de mim.
 
 Nossa terra, tão linda tão pujante, recoberta de araucárias e erva-mate, de imbuias e cedros, um luxuriante verde que atraiu a ganância de muitos até em territórios de além fronteiras.
 
Milhares de metros de trilhos de ferro estendidos em troca de milhares de vidas.
  
Mas eu via o trem. Eu vivia o trem. E pelo trem eu perambulava desde criança sem nada disto saber. Porque esta triste e horripilante história não era narrada nos livros de história. Nos livros da história oficial.
  Uma triste história que poucos conheciam. E que, aos sussurros, os nossos maiores transmitiam aos seus. Aos pedaços. Como se fossem mistérios resguardados. Como se fossem lendas.
 Uma história que deixou um solo tinto de sangue. Com uma tintura que nele, há mais de um século, enraigada ficou.
 Uma história que deixou sucatas de ferro espalhadas pelo planalto, pelas serras e pelas campinas.
 Uma que outra locomotiva puxando alguns vagões faz, ainda, vez por outra, uma viagem de saudade por alguns poucos quilômetros…
 
 Poderia ter sido tão diferente a implantação dessa ferrovia se apenas o seu leito tivesse sido desbravado.
 Poderia ter sido tão diferente a implantação dessa ferrovia, se os senhores donos do mundo tivessem deixado suas confortáveis poltronas, nas suntuosas salas palacianas, e para cá tivessem vindo, a fim de ver e ouvir a voz do povo que por este território vivia.
 Poderia ter sido tão diferente a implantação dessa ferrovia se ao caboclo, ao nativo destas terras, tivesse sido dada uma digna troca em moedas reais.
  Dizimaram os caboclos rebeldes…
  Acabaram com a verdejante e luxuriante mata. Derrubaram a imbuia e a araucária. Nada mais havia para ser cortado. Nada mais havia para ser serrado. Acabou a madeira. Fecharam-se os galpões das serrarias. Acabou a ferrovia.
  Poderia ter sido tão diferente se cada um tivesse recebido de acordo com as suas obras, como reza o milenar compêndio bíblico.
 
  Mas, nada disto eu sabia, e muito menos pressentia, quando, por estes trens eu vagueava desde muito pequena.
  
Para o lado oeste foram muito poucas as incursões. Não só porque para aqueles lados o trem somente seguia um pouco antes das seis horas da tarde. E só retornaria na manhã seguinte. Mas, também porque, dizia-se, era para aqueles lados que o famigerado facínora Coronel Fabrício ficava acoitado. E havia sempre o medo, segundo a lenda, de que, ainda vivo estaria na década de quarenta do século que se foi.
 
 Coronel Fabrício, aquele que tomou de assalto um comboio inteiro lá pelas bandas de Felipe Schmidt e, matando e saqueando, pela via férrea seguiu até a estação de Mafra.
 
 Então nossos pais temiam em nos deixar fazer passeios e o pernoitar em casa de amigos que no oriente vizinho morassem.
 
 Eram muitos os conhecidos nossos que viviam nas localidades que se situavam ao longo da via férrea, entre Marcílio Dias e Porto União. Entre eles, professoras, amigas e colegas de minhas irmãs que, mensalmente, para a cidade vinham a fim de participarem das reuniões com o inspetor escolar.
 
 Quando findo era o ano letivo, necessário se fazia aquilatar os conhecimentos dos alunos. Mas, não seria conveniente que a professora que ministrara as aulas fosse a examinadora. Então havia sempre um revezamento.
 
 Foi assim que, em nossa casa, em Marcílio Dias, a cada ano hospedava-se uma diferente professora-examinadora. Da mesma forma, minha irmã Aline deslocava-se para outras localidades. E a primeira escola para a qual ela foi designada ficava em Felipe Schmidt. Feliz, acompanhei-a. E que inesquecível recepção. A professora, dona Maria Eugênia era, justamente, esposa do agente da estação ferroviária. E lá ficamos hospedadas. Um delicioso bolo nos esperava. Sucederam-se outras iguarias mais, uma mais deliciosa que a outra.
 
 Enquanto os alunos esmeravam-se respondendo às questões de suas provas, eu não poderia ficar de lado. Dona Maria Eugênia arrumou uma folha de papel almaço pautado e fiz a prova também.
  
No ano seguinte fomos a Taunay, onde nossa velha conhecida Dona Izabel de Matos, que também é Mota, era a mestra. Dona Izabel já por muitas vezes ficara em nossa casa, porque amiga de longa data já era de minhas irmãs mais velhas. Foi em casa dela que ficamos naquelas duas noites em que em Taunay estivemos.
 Todas as estações de trem sempre ostentavam uma enorme tabuleta em suas laterais, na qual, em garrafais letras em negro pintadas ficava o nome da localidade, vila e ou cidade. Era uma identificação visual vislumbrada a distância.
 
 Lembro-me, nitidamente, ter visto, em uma ocasião, na referida tabuleta, o nome Taunay ter sido grafado TONÉ. A intenção, segundo os dirigentes da RVPSC, era o de incutir na mente da população a correta pronúncia do cultuado Visconde que era d’Escragnolle também.
  
Não adiantou. Protestos de todos os lados. Quase revolta do povo de lá. E de cá também. Onde se viu mudar o nome da vila de Taunay para um ridículo Toné. Logo o mundo os confundiria como nascidos em Boné. Ou em Tomé. Não aceitaram. Não e não. E ponto final. E a branca tabuleta da estação de trem voltou a ostentar em garrafais e negras letras a palavra Taunay. E Taunay ficou. Como continua sendo conhecida até os dias de hoje. Ninguém, jamais, nasceu ou viveu em Toné. Sempre em Taunay.
 
 Quando eu decidi que não iria passar minha vida lecionando, alterei o meu ciclo de estudos. Não concluí a Escola Normal em nosso Sagrado Colégio. Foi Joinville o meu destino para cursar o Científico. Iniciaram-se então aquelas viagens que levavam até doze horas em um trem. se nada acontecesse de errado na linha férrea.
 
 Mas era uma viagem diferente. A partir de Serra Alta, nome da estação de São Bento do Sul, lenta e suavemente inicia-se a descida em direção ao mar. Que mais íngreme se torna depois de Rio Vermelho, formando o inigualável rabo de macaco até atingir Rio Natal. Mais de quinhentos metros a altitude entre as duas. Enrodilha-se a ferrovia, contornando a montanha num ir e vir sem fim. Da janela do vagão, um patamar acima, via-se a fumaça da locomotiva em uma curva mais abaixo.
 
 Panorama extasiante quantas vezes desfrutado com os paredões da montanha de um lado e os íngremes precipícios de outro.
  
Desfrutava-se das viagens pelos trens, sem jamais imaginar a sangrenta história que dormira sob os trilhos e os dormentes, adormecida na consciência daqueles que nunca consciência tiveram.
 
Escrito pela marciliense Adair Dittrich
Campo do Trigo em frente a propriedade do seu Canela.

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