terça-feira, 22 de novembro de 2016

Um rio...o meu rio


            O meu rio não tem águas cristalinas. Águas transparentes o meu rio não tem. Porque o leito por onde deslizam as águas do meu rio tem a cor da terra por onde deslizam meus pés.
            O meu rio está lá no mesmo lugar de sempre, a poucos passos do leito que me viu nascer. Creio até que foi o som de suas águas, continuamente a correr entre as suas barrancas, o chamamento para o meu desembarque ali. O desembarque da nave que de outros mundos para a minha vila me conduziu.
            O meu rio não tem o inconstante marulhar de ondas batendo contra uma praia de areias branquinhas. Porque apenas pequenas praias de areia da cor da terra ele tem. Mas, o meu rio tem o rumorejar constante de águas que continuamente fluem pelo nosso planaltino vale. Das águas que com as águas de outros rios no mar vão se encontrar.
            As águas do meu rio não refletem apenas a cor de seu leito terroso. Refletem, também, o verde que em suas margens, vicejantes, se estendem.
            Manso e sutil é o meu rio. No entanto, assim ele não é desde onde nasce, desde o momento em que simples filete do seio da montanha irrompe, desde onde os seus primeiros laivos de vida ao mundo são mostrados.
            Mas é assim que eu o sinto. Porque este é o espetáculo que desde sempre ele me mostra nesta pequena nesga de terra onde vivi.
            O meu rio nasce lá nas serras que se perdem nas distâncias dos horizontes sem fim. Cascateando de mansinho vem ele contornando a montanha. Peregrinando entre seixos e cascalhos. Um fino fio de água resplandecendo ao sol de cada manhã. Um fino fio de água que a sede de muitos caminhantes nestes milênios todos mitigou.
            E o meu rio vem deslizando pelas matas. Pelos campos e searas vem deslizando depois, mansamente, o meu rio. E se alargando pelos caminhos vem o meu rio. Descendo devagar, escorregando ele vai, contornando levemente, curvas atrás de curvas.

Mas, descer um pouco mais é preciso. Então suas águas brancas espumas se tornam quando encontram um osbstáculo de pedras em seu trajeto. Ruidosamente entre elas estas águas vão passando e de um salto do aclive elas se lançam.

            Mas este local onde o meu rio se estreita e apertado entre pedras de uma pequena garganta ele salta eu só vim a conhecer algumas décadas depois de o seu primeiro rumorejar ter chegado aos meus ouvidos.

            Deslizando depois ele vai por este nosso altiplano abençoado, tendo deixado, na passagem dos tempos, mesas repletas com reluzentes peixes que de suas águas foram tirados. E sobre a sua superfície lanchas e barcos por muitos anos desfilaram. Porque antes, muito antes da via férrea até o nosso rincão chegar era ele a via de ligação entre os povos de então.
            Que por ele chegavam em pequenas canoas também. Ou através delas, ou sobre elas, a servir de elo entre as suas margens. Diziam até que o seu nome havia se originado quando tropeiros de antigamente por cima daquelas canoinhas o cruzavam.
            Tempos depois historiadores descobriram o nome Canoas Pequeno em antigos mapas e antigas descrições de alguns desbravadores que o consideraram um filho, um fluente de um rio maior de nome Canoas.
            Ah! Mas o meu rio é apenas um pedaço circunscrito do longo rio que tem o seu início lá nas montanhas distantes. O meu rio é restrito ao pequeno território por onde em criança eu vaguei, por onde na vida brinquei.
            O princípio do meu rio ficava logo depois do monte de serragem da serraria do seu Wiegando Olsen. Para o meu rio eu só olhava embevecidamente. Menina não podia em suas águas nadar como os meninos o faziam. Menina podia, talvez, entrar num bote com os mais velhos, para dar uma voltinha pelas margens alagadas.
            Até que, para pescar, fui junto com meus irmãos algumas vezes. Vãs tentativas. Jamais consegui ficar dependurada nas barrancas de um rio com uma vara de pescar nas mãos. Não, não era a minha eterna falta de paciência. . . não, não era o silêncio exigido para não espantar os peixes o que me fazia para casa retornar. . .  Não apenas. . . Pois o
vento soprando, intermitentemente nos salgueiros e as nuvens de irritantes pernilongos a zunir em meus ouvidos e a castigar minha pele tornaram, definitivamente, a pesca algo irritante para mim.


          Do que eu gostava era de olhar para o meu rio. Ficar olhando o desenho das árvores refletido nas águas da outra margem. Desenhos ondulantes. Danças do verde nos terrosos tons das águas.
            Ver os nadadores a disputar, em rápidas braçadas, qual o mais veloz, o vencedor da travessia de margem a margem. Uma competição que, de repente, para muitos poderia até ter ficado monótona ao ver que o Peixinho Dourado sempre chegava no outro lado do rio bem à frente dos demais. Peixinho Dourado, o eterno campeão, era o meu irmão mais novo, o Maurinho. Maurinho de cabelos dourados, cor de fogo.
            Já não mais criança eu era quando descobrimos outro local encantado de nosso rio. Um local mais distante onde o rio, graciosamente, faz uma curva. Chamávamos de Corredeira da Barbara. Porque para lá se chegar necessário é atravessar um terreno que era de uma sorridente e bondosa senhora que se chamava Barbara. Dona Barbara Barabacha.
            E na corredeira que ficava logo após a curva do rio as areias se aglutinavam. Para formar a prainha onde lágrimas se escondiam, onde secavam ao sol corpos cobertos de água e espumas.
            Não são pedras que formam esta corredeira. Do mesmo cascalho azul de que é composto o costão da colina ao lado é atapetado o leito daquele pedaço do meu rio. Não são seixos rolados. São pontiagudas arestas que, de um cascalho lá diagonalmente deitado, castigavam nossos pés.
            Mas era a nossa corredeira. Um recanto encantado, um pedaço de chão que muitos risos ouviu nas tardes ensolaradas de muitos verões. Era a nossa prainha, o nosso aconchego veraneiro. Que marcou um tempo de cristalina luz e dos mais puros sons.

            Um rio. . . o meu rio visto da ponte. Da bela ponte preta que até hoje se ergue altaneira depois da curva por onde vinha o trem da tarde para a estação da minha vila. Do

alto da ponte que Peixinho Dourado fazia de trampolim para os seus saltos ornamentais rumo às águas da cor de terra do meu rio.

            Meu rio é simples. Não é um longo e nem um largo rio. Mas ele é o meu rio. O nosso rio. O rio de minha terra. O rio que nos une e enleva. Que tem nos longes ali mais adiante, a poucos passos do leito onde nasci o seu final, a sua foz, o ponto onde joga as suas águas em outro irmão maior. Onde o nosso Canoinhas encontra o Negro. E as suas águas correndo vão em busca do mar num paralelo distante que se perde nos longes ao sul de nosso continente.



Escrito por Adair Dittrich









Imagens do rio Canoinhas. Fotos Fátima Santos.


Corredeira - 2013.




Imagens da Barbara, corredeira, citada no texto.





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