quinta-feira, 16 de junho de 2016

Dos pastéis da Dona Nena

             Mal os trens aportavam na velha estação de minha vila era uma correria só daquele povo todo para não perder a chance de saborear um pastel quentinho produzido pelas mãos de fada de Dona Nena, minha mãe.
            Qual seria o segredo daquela carne que recheava iguaria tão deliciosa? Seria o tempero? E minha mãe jamais negou a receita a quem lhe pedisse. Sempre dizia ser tudo muito simples. Jamais o segredo escondeu. Porque, dizia, segredo não havia. Mas, o incomparável pastel jamais encontrou similar.
            Que carne usava? Como a preparava? Apenas sabemos que a carne era a carne comum de um gado comum abatido pelos açougueiros da terra. O açougueiro poderia ser o seu Pangratz lá da nossa vila ou o seu Knüppel que a carne enviava da cidade pelo trem.
            Lembro-me de que no tempo em que os trens viviam locupletados duas ou até mais vezes por semana chegavam até o Restaurante as grandes peças de carne de gado. Literalmente um quarto traseiro de boi.
            Era uma cena incrível o que se via. Aquele imenso volume vermelho e fresquinho sendo deitado sobre a mesa quase branca. Quase branca de tanto ser lavada, de tanto ser esfregada.
E não havia ainda água sanitária e nem os detergentes de agora. Era tudo à base de sabão de soda feito em casa. Sabão, sapólio em barra e muita esfregação manual, a pura e legítima higienização mecânica.
E naquela mesa de tábuas claras, quase brancas por este contínuo esfregar estendia-se aquela enorme e compacta peça vermelha de carne sangrante recém do açougue chegada. E, com suas hábeis mãos minha mãe ia dissecando e separando, parte por parte, as diferentes peças que a compunham.
 E assim acumulavam-se na nossa grande geladeira, na nossa velha Frigidaire, que nos acompanhou por tantos anos, os nacos de coxão mole, as postas brancas e vermelhas, os bifes de alcatra, de contrafilé, de filé mignon e todas as demais. Cada qual para um fim específico na cozinha ímpar de Dona Nena.
E, claro, havia ainda toda aquela carne que era chamada de coxão duro, músculos inseridos diretamente nos ossos dos membros inferiores do boi.
Estes ossos, envoltos com sua carne toda, iam imediatamente para uma grande panela na qual juntamente com escolhidos temperos eram colocados para ferver no grande fogão de lenha que ocupava um quarto da já grande cozinha do restaurante da estação de Marcílio Dias. E o resultado primeiro era o delicioso aroma que exalava desse caldo que seria a base da sopa do almoço e do jantar que, religiosamente foi servida em todos os dias de todas as semanas enquanto os trens de passageiros pela minha vila circularam.
Caldo coado, sopa feita, sopa servida, sopa degustada, sopa apreciada e sopa elogiada, na grande panela somente ossos e carnes restavam.
E esta seria a carne que rechearia os famosos pastéis cuja memória até hoje enche de água a boca de tantos quantos os saborearam.
A carne bem cozida e já com uma base de tempero ia para a grande máquina de moer que era uma máquina manual, de fina peneira, movida a manivela pelos fortes músculos dos sempre valiosos auxiliares, entre os quais até eu e toda a família nos incluíamos.
Mais temperos eram acrescentados e sob fogo muito brando, suavemente, tudo era mexido até que resultasse aquela mistura espessa e macia que seria embutida na massa feita por minha mãe também.
Ainda a vejo colocando numa tigela farinha, óleo, sal, água e ovos, misturando tudo com as mãos. Depois esta massa era estendida na mesa com o famoso pau de macarrão, um longo rolo de madeira com mais de um metro de comprimento e quase cinco centímetros de diâmetro. E a massa sobre a grande mesa retangular estendida parecia uma imensa toalha ovalada de coloração amarelo-pálida.
E as ágeis mãos iam estendendo a massa até torná-la com a fina textura que só ela sabia ser a ideal. Sobre a fina massa enfileiravam-se, em uma constante reta, os morrinhos daquela carne tão deliciosamente temperada. Deitava então outra parte da massa sobre os montículos. E, moldando com as mãos, formava os pastéis na forma de uma quase meia-lua. Após destacá-los com uma especial carretilha de metal dourado, levava-os para a frigideira onde sibilava já a banha de porco ou o óleo, na temperatura ideal, de onde saiam dourados e reluzentes.
Dourados e reluzentes pastéis recheados com a carne dos deuses, saídos das mágicas mãos de Dona Nena, espalhando pelo espaço sem fim inesquecível aroma sem par.
Publicação de Adaír Dittrich colunista do Portal JMais.


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