domingo, 14 de setembro de 2014

Caçada de Perdizes

          Ao tempo que meu pai era ferroviário e tinha saúde passava o seu tempo de folga e de férias preparando os apetrechos para as caçadas e correndo pelos campos que rodeavam Marcílio Dias atrás daquelas aves de sabor delicioso, as famosas perdizes.
         Havia o tempo certo para as caçadas, o tempo regulamentado pelo ciclo de vida das aves. Não se podia caçar ao tempo da postura e quando as crias eram pequenas sob pena de extinção da espécie.
         Para meu pai e seus amigos e companheiros de caçada isto era não apenas lei, mas um dogma, uma doutrina de vida.
        Sei que muitas pessoas participavam deste esporte, mas não me lembro ou nunca soube ao certo quem eram. O que não esqueço é daqueles aficionados de sempre.
       Eram os dois Olsens, do tempo que me lembro: Seu Wiegando e Seu Waldemiro. Muitas vezes o médico Dr. Oswaldo de Oliveira ia para os campos com eles. Depois também o Seu Alfredo Lepper veio a participar.
      E da companhia de Dr. Oswaldo o que se contava depois é que ele é que fazia a partilha das perdizes com uma aritmética sui-generis. Quando ia ele, seu Wiegando e meu pai então a divisão, a partilha que era para ser para três a que ele fazia era assim:
     A primeira para ele, Dr. Oswaldo, e falava assim: “Uma para mim (e punha a perdiz junto dele), outra para você (e a entregava para seu Wiegando), outra para você (e colocava uma ao lado de meu pai) e outra para mim (mais uma para ele). E depois continuava sempre nesta sequência: uma para mim, uma para o seu Wiegando, outra para meu pai e mais outra para ele. Ao final ele sempre ficava com o dobro dos demais... Claro que todos percebiam a história e só davam risadas contando a façanha depois... Mas... era para o Dr. Oswaldo...então podia ficar assim mesmo, não tinha importância.
     O preparatório era intenso, minucioso e gradual. As armas que eram as espingardas de dois canos tinham que ser diariamente limpas e lubrificadas. Meu pai tinha os seus apetrechos que incluía uma maquininha de manivela onde colocava os cartuchos e os enchia com a pólvora, o chumbo e algo mais que não lembro; era como se fosse um pouco de serragem de madeira, mas não posso afirmar com certeza. E por último a espoleta que era encaixada num orifício situado na parte proximal (ou final) do cartucho. Os cartuchos eram de metal de cor dourada, talvez feitos de alguma liga que continha cobre e latão, não sei.
     Sem dúvida que, sem os cães, não haveria caçada. Eram os chamados perdigueiros. E iam animados, porque para eles era uma festa. Encontravam as aves escondidas nas moitas e ao chegar perto faziam com que elas alçassem voo e então o caçador da vez mirava e atirava. E depois o cachorro ia buscá-la onde tivesse caído e a entregava aos pés do caçador. Os melhores cães não machucavam as perdizes, abocanhando-as sempre pela cabeça para que não se estragasse a parte que iria para a mesa dos banquetes especiais.
     Perdiz em casa era sempre uma festa. Era sempre um almoço ou um jantar especial. Mamãe a preparava “à cacciotore”, ou seja, à moda de como se prepara uma ave silvestre que foi caçada.
    Eram depenadas a seco, sem água fervente como se faz com as galinhas e outras aves domésticas. O preparo restante era igual. Cortadas em pedaços corretos, obedecendo a um plano de clivagem que não deixava partes agudas nos ossos; os cortes eram jusantes às articulações. Eram temperadas e colocadas para assar nos fornos dos fogões à lenha.      Em cima de cada pedaço da ave era espetado um pequeno pedaço de toicinho e uma ou duas folhas de sálvia. E durante o todo tempo em que estavam no forno deveriam ser regadas com o molho do tempero, acrescido de muita manteiga. Imagine o sabor! Que saudade! São coisas que, como sempre diz uma sobrinha minha: “Quem aproveitou o que a vó fazia, aproveitou; quem não aproveitou, não aproveita mais!”
     E, claro está que, em nossa casa, sendo casa de italianos, era sempre servida em cima da polenta. As travessas já iam para a mesa com a polenta por baixo e as peças das perdizes assentadas em verdadeiros ninhos que minha mãe fazia com uma concha.
    Uma surpresa muito grande aconteceu no casamento de minha irmã Avany que foi em janeiro: o prato principal do almoço do casamento era polenta com perdiz, à moda da Dona Nena. Como poderia ter perdiz ao forno em pleno mês de janeiro. E minha mãe ria explicando que tudo tinha sido muito simples. À época propícia das caçadas ela preparou normalmente as perdizes, sem, no entanto, deixá-las assando ao ponto, mas retirando-as antes e as colocava em vidros de conserva, mergulhadas em azeite. E colocou os vidros para fervura assim como ainda hoje são preparadas as conservas. No dia da festa foi só abrir os vidros, colocar as peças nas assadeiras e levá-las ao forno a fim de ficarem no ponto certo para serem servidas.
     A época certa para a caça não sei ao certo, mas creio que só a partir do mês de maio até setembro, talvez que é quando começa a fase da postura.
     Talvez não se fale mais em caçar perdizes por aqui porque a população delas tenha diminuído. Os campos e banhados, que eram seu habitat natural e que se estendiam pelas margens de nossos rios estão hoje já quase “urbanizados”...
    Não me lembro de restrições à caça de perdizes e nem que alguém fosse contra. Mesmo hoje em dia esta caça é estimulada com a finalidade da preservação da espécie o que parece ser uma contradição. Mas é que assim a difusão dessas aves é estimulada e há também muitas criações delas em cativeiro com a finalidade única de serem servidas como uma iguaria especial.
Texto de Adaír Dittrich

Caçadores de perdizes de Marcílio Dias.
Foto cedida por Luciana Pizzatto.
Foto de Álvaro Uhlig, cedida por Fernando Tokarski.
Escrita atrás da foto: Fazenda Schadeck, em Papanduva, SC, 1929. 


Canoinhas. Janeiro de 1915. O 12º Batalhão de Infantaria na Estação Ferroviária.
Estação de Canoinhas, hoje Marcílio Dias. À esquerda o Restaurante que meus nonos Pedro e Tereza Gobbi construíram. Esta estação foi incendiada pelos jagunços. E o armazém mais à direita, aos fundos, também foi consumido pelo fogo muito tempo depois. Armazenados estavam tonéis de gasolina. Quem presenciou este incêndio dizia que parecia uma guerra pelo estrondo das explosões dos tonéis de combustível que eram arremessados ao ar ardendo em chamas como se fossem rajadas de inúmeros canhões."
Informações de Adaír Dittrich. Foto postada no Facebook por Everaldo E. Barcelos.


3 comentários:

  1. Quando eu "crescer" quero escrever com tanta maestria e texto com ideias bem articuladas . Cada escrita tem um significado único, singular na vida de quem escrever e o faz com ternura e sapiência.Agradeço dividir conosco estes magníficos e valiosos apontamentos. Abraço, sou tua fã.

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  2. A Doutora Adaír é uma excelente escritora, com uma memória incrível e apaixonada por nossa vila de Marcílio. É muito bom poder contar com a colaboração dela neste blog. Abraços Eliane.

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  3. Se poder me mande mais fotos..sou apaixonado nisso

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