terça-feira, 24 de maio de 2016

A Cafeína: só o nome ficou (Parte II)

   E  naquele tempo em que uma fábrica para a produção de cafeína começou a funcionar em nossa vila, um pensamento começou a rodopiar na cabeça de muitos.
O que teria levado os mandatários de então a montar esta fábrica em nossa região?
Era a época da Segunda Grande Guerra Mundial. O mundo convulsionando. O mundo necessitando desta droga para adicioná-la aos analgésicos de então. Que eram vários, mas em especial havia aquele que à aspirina de sua fórmula, adicionado teve a palavra café. Era de um laboratório cujo anúncio rezava que se era dele era bom. Já o outro, também muito conhecido, misturou a cafeína ao AAS, ou seja, ao ácido acetilsalicílico e alardeava que o seu era melhor e não fazia mal.
E o mundo em guerra precisava da cafeína, mas, não poderia prescindir do café. E extraí-la do café estaria sendo economicamente inviável. Não havia como diminuir a produção da nossa Coffea arabica. E, das folhas da nossa tão conhecida árvore, da nossa erva-mate, poder-se-ia extrair a tão necessária droga tão bem quanto, ou quase quanto. Porque a nossa erva-mate tinha um menor teor de cafeína. Mas compensaria porque a oferta de folhas parecia ser infindável e tínhamos florestas nativas a se perder de vista e a matéria-prima jamais se acabaria.
Mas ficamos sabendo o que se produziria na fábrica somente dias depois de nossa solene procissão atrás do caminhão que transportara os instigantes caixotes desde o armazém da estrada de ferro até o nosso já conhecido barracão que os abrigaria. E logo que a comunidade toda da vila tomou conhecimento de tudo a curiosidade foi se amainando.
Mas a angústia de todas aquelas crianças em saber como seria tudo lá, lá no interior da fábrica nunca findava. Pois era um barracão fechado. Diferente, muito diferente, dos abertos galpões da serraria onde ficávamos, por horas, vendo as toras neles entrando, sendo serradas e transformadas em tábuas de vários tamanhos e de várias espessuras. E de onde saíamos cobertos de serragem. Lá a tudo se via e a tudo se acompanhava. Cá, no fechado barracão, havia o mistério. Com a expectativa continuando.
Necessários foram dias e dias de comportamento exemplar e de aplicação extrema em sala de aula para sermos contemplados e presenteados, enfim, com a famosa visita para a nova fábrica de nosso encantado território.
E no grande dia que chegara não poderíamos ir todos ao mesmo tempo. Escalas foram feitas para grupinhos de dez por vez. Porque muita coisa lá era frágil e de manuseio muito fino e delicado.
Enfileirados e em silêncio vimos as folhas da erva-mate serem, primeiramente, separadas dos galhos e colocadas em grandes tanques onde passavam por um processo de lavação. De lá, passavam por uma tubulação que as ia jogando dentro de enormes tinas circulares, feitas de madeira e que tinham quase dois metros de diâmetro.
O aroma do mate inundava todo o ambiente. Mas o que se via dentro das tinas era apenas uma negra massa borbulhante verde-escura-quase-negra, visguenta e pegajosa que se movia continuamente graças a enormes pás que giravam em sentido horário.
Tubos saiam também de cada tina, iam se interligando e depois seguiam em direção ao alto onde desembocavam em outro grande cano que avançava em direção a um compartimento fechado situado na parte superior do barracão.
Lá, dentro daquele compartimento, a visão que ainda hoje me impressiona e me fascina.  Lá, dentro dele, uma outra sala totalmente de vidro construída.
E dentro da sala uma parafernália de tubos de vidro, transparentes também, que se interligavam. Tubos de todos os tamanhos, diâmetros e formas. Tubos que, no meio do caminho se transformavam em bolas, afinando-se novamente e dentro deles um líquido corria. E conseguimos perceber que lá no início um líquido verde começava a desfilar, um verde líquido que depois de passar por dentro de vários compartimentos aos poucos começava a clarear e a se transformar.
Conhecemos ali aquela pequena balança de precisão que ficava guardada em outro pequeno armário de vidro também. E havia ainda campânulas e redomas, tubos de ensaio e pipetas.
Dr. Canuto e Dr. Adir Vilela, os Engenheiros Químicos, de guarda-pó branco vestidos, foram os nossos cicerones na viagem fantástica daquela verde-escura-quase-negra-massa que entre as paredes de vidro se iniciava. Massa negra e pastosa, que nos causara um quê de terror quando a vimos nas tinas do piso inferior, emergia agora como límpidos, brancos e fulgurantes pequenos flocos que se depositavam em transparentes placas, como brancos cristais de neve. Cristais de neve que até então somente em filmes havíamos visto. Era a pura e branca cafeína ali sendo depositada.
Espetáculo deslumbrante, que de minha memória não sai, um dos maiores encantamentos de minha infância.
Com o término da Segunda Grande Guerra Mundial o consumo da cafeína diminuiu no mundo e os laboratórios começaram também a produzi-la sinteticamente.
E a nossa fábrica fechou. Desmancharam o barracão. E toda aquela madeira que formara as suas paredes lá continuou na forma de pequenas casas para abrigar as famílias dos operários da serraria.
E, da Cafeína só o nome ficou. O nome de um bairro e de uma singela rua de minha vila.
 
Texto de Adaír Dittrich colunista do Portal JMais


Rua Celestino Leite também conhecida como "rua da cafina".

3 comentários:

  1. Bela história,sou morador do Distrito a 16 anos,e nunca tinha ouvido falar desta fabrica,há muito o que se descobrir ainda.O importante é que não deixemos morrer com o tempo.

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    1. Importante conhecer a história da nossa vila. Este é um dos objetivos deste blog e, a Dra Adaír tem contribuído para isso. Abraços!

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  2. Bela história,sou morador do Distrito a 16 anos,e nunca tinha ouvido falar desta fabrica,há muito o que se descobrir ainda.O importante é que não deixemos morrer com o tempo.

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