Ao tempo que meu pai era
ferroviário e tinha saúde passava o seu tempo de folga e de férias preparando
os apetrechos para as caçadas e correndo pelos campos que rodeavam Marcílio
Dias atrás daquelas aves de sabor delicioso, as famosas perdizes.
Havia o tempo certo para as caçadas,
o tempo regulamentado pelo ciclo de vida das aves. Não se podia caçar ao tempo
da postura e quando as crias eram pequenas sob pena de extinção da espécie.
Para meu pai e seus amigos e
companheiros de caçada isto era não apenas lei, mas um dogma, uma doutrina de
vida.
Sei que muitas pessoas participavam
deste esporte, mas não me lembro ou nunca soube ao certo quem eram. O que não
esqueço é daqueles aficionados de sempre.
Eram os dois Olsens, do tempo que me
lembro: Seu Wiegando e Seu Waldemiro. Muitas vezes o médico Dr. Oswaldo de
Oliveira ia para os campos com eles. Depois também o Seu Alfredo Lepper veio a participar.
E da companhia de Dr. Oswaldo o que
se contava depois é que ele é que fazia a partilha das perdizes com uma
aritmética sui-generis. Quando ia ele, seu Wiegando e meu pai então a divisão,
a partilha que era para ser para três a que ele fazia era assim:
A primeira para ele, Dr. Oswaldo, e
falava assim: “Uma para mim (e punha a perdiz junto dele), outra para você (e a
entregava para seu Wiegando), outra para você (e colocava uma ao lado de meu
pai) e outra para mim (mais uma para ele). E depois continuava sempre nesta
sequência: uma para mim, uma para o seu Wiegando, outra para meu pai e mais outra
para ele. Ao final ele sempre ficava com o dobro dos demais... Claro que todos
percebiam a história e só davam risadas contando a façanha depois... Mas... era
para o Dr. Oswaldo...então podia ficar assim mesmo, não tinha importância.
O preparatório era intenso,
minucioso e gradual. As armas que eram as espingardas de dois canos tinham que
ser diariamente limpas e lubrificadas. Meu pai tinha os seus apetrechos que
incluía uma maquininha de manivela onde colocava os cartuchos e os enchia com a
pólvora, o chumbo e algo mais que não lembro; era como se fosse um pouco de
serragem de madeira, mas não posso afirmar com certeza. E por último a espoleta
que era encaixada num orifício situado na parte proximal (ou final) do
cartucho. Os cartuchos eram de metal de cor dourada, talvez feitos de alguma
liga que continha cobre e latão, não sei.
Sem dúvida que, sem os cães, não
haveria caçada. Eram os chamados perdigueiros. E iam animados, porque para eles
era uma festa. Encontravam as aves escondidas nas moitas e ao chegar perto
faziam com que elas alçassem voo e então o caçador da vez mirava e atirava. E
depois o cachorro ia buscá-la onde tivesse caído e a entregava aos pés do
caçador. Os melhores cães não machucavam as perdizes, abocanhando-as sempre
pela cabeça para que não se estragasse a parte que iria para a mesa dos
banquetes especiais.
Perdiz em casa era sempre uma festa.
Era sempre um almoço ou um jantar especial. Mamãe a preparava “à cacciotore”, ou
seja, à moda de como se prepara uma ave silvestre que foi caçada.
Eram depenadas a seco, sem água
fervente como se faz com as galinhas e outras aves domésticas. O preparo
restante era igual. Cortadas em pedaços corretos, obedecendo a um plano de
clivagem que não deixava partes agudas nos ossos; os cortes eram jusantes às
articulações. Eram temperadas e colocadas para assar nos fornos dos fogões à lenha.
Em cima de cada pedaço da ave era espetado um pequeno pedaço de toicinho
e uma ou duas folhas de sálvia. E durante o todo tempo em que estavam no forno
deveriam ser regadas com o molho do tempero, acrescido de muita manteiga.
Imagine o sabor! Que saudade! São coisas que, como sempre diz uma sobrinha
minha: “Quem aproveitou o que a vó fazia, aproveitou; quem não aproveitou, não aproveita
mais!”
E, claro está que, em nossa casa,
sendo casa de italianos, era sempre servida em cima da polenta. As travessas já
iam para a mesa com a polenta por baixo e as peças das perdizes assentadas em
verdadeiros ninhos que minha mãe fazia com uma concha.
Uma surpresa muito grande aconteceu
no casamento de minha irmã Avany que foi em janeiro: o prato principal do
almoço do casamento era polenta com perdiz, à moda da Dona Nena. Como poderia
ter perdiz ao forno em pleno mês de janeiro. E minha mãe ria explicando que
tudo tinha sido muito simples. À época propícia das caçadas ela preparou
normalmente as perdizes, sem, no entanto, deixá-las assando ao ponto, mas
retirando-as antes e as colocava em vidros de conserva, mergulhadas em azeite.
E colocou os vidros para fervura assim como ainda hoje são preparadas as
conservas. No dia da festa foi só abrir os vidros, colocar as peças nas assadeiras
e levá-las ao forno a fim de ficarem no ponto certo para serem servidas.
A época certa para a caça não sei ao
certo, mas creio que só a partir do mês de maio até setembro, talvez que é
quando começa a fase da postura.
Talvez não se fale mais em caçar
perdizes por aqui porque a população delas tenha diminuído. Os campos e
banhados, que eram seu habitat natural e que se estendiam pelas margens de
nossos rios estão hoje já quase “urbanizados”...
Não me lembro de restrições à caça
de perdizes e nem que alguém fosse contra. Mesmo hoje em dia esta caça é
estimulada com a finalidade da preservação da espécie o que parece ser uma
contradição. Mas é que assim a difusão dessas aves é estimulada e há também
muitas criações delas em cativeiro com a finalidade única de serem servidas
como uma iguaria especial.
Texto de Adaír Dittrich
Texto de Adaír Dittrich
Caçadores de perdizes de Marcílio Dias. Foto cedida por Luciana Pizzatto. Foto de Álvaro Uhlig, cedida por Fernando Tokarski. Escrita atrás da foto: Fazenda Schadeck, em Papanduva, SC, 1929. |
Quando eu "crescer" quero escrever com tanta maestria e texto com ideias bem articuladas . Cada escrita tem um significado único, singular na vida de quem escrever e o faz com ternura e sapiência.Agradeço dividir conosco estes magníficos e valiosos apontamentos. Abraço, sou tua fã.
ResponderExcluirA Doutora Adaír é uma excelente escritora, com uma memória incrível e apaixonada por nossa vila de Marcílio. É muito bom poder contar com a colaboração dela neste blog. Abraços Eliane.
ResponderExcluirSe poder me mande mais fotos..sou apaixonado nisso
ResponderExcluir