Texto de Adair Dittrich
Na lembrança de um
vendaval encadeiam-se lembranças de outros. E das trágicas histórias contadas.
Foi em algum ano do final da primeira
metade do século passado que um espetáculo formou-se no céu do entardecer. Que
foi visto, com um misto de êxtase e apreensão, pelas alunas internas do Colégio
Sagrado Coração de Jesus, através da imensa janela do dormitório que ficava do
lado oeste.
Era um
céu de cobre que dominava todo o horizonte. E não apenas naquela costumeira
nesga de crepúsculo, não. Aquele céu estava muito acima de qualquer altura
imaginada para os últimos raios de um sol se pondo.
Era um
crepúsculo belo e diferente. Um crepúsculo assustador. Ainda hoje um céu
cobreado ao entardecer deixa em mim um laivo de angústia percorrendo o âmago.
No dia seguinte a notícia que o mundo
ficou sabendo. A tragédia. A destruição. A devastação. E o triste choro de
órfãos e viúvos. O choro dos sozinhos depois do vendaval. Era “O
Vendaval”. O Vendaval de Valinhos.
Longe estava eu daqui, uns dez anos
depois, quando recebi outra avassaladora notícia. Outro vendaval levara uma
família inteira de amigos e colegas meus do tempo do Sagrado. Talvez de dimensões
e consequências piores que o anterior. Foi o Vendaval de Santa Bárbara de Rio
dos Pardos.
E no rasto desta trágica lembrança
volta à minha mente um outro fenômeno de ventos e chuvas que abalou a nossa
vila de Marcílio Dias.
Era uma tarde de domingo e eu recém
voltava do hospital. Família reunida em frente ao receptor de televisão
assistindo a um programa onde desfilavam os sucessos musicais da semana. E o
cantor Toni Tornado cantava a sua música.
E foi naquele instante que se ouviu
mais que um rugido, um estrondo no espaço aéreo como se um Concorde estivesse
passando já em cima de nossa casa.
E fez-se a escuridão em plena tarde de
domingo. Apagaram-se as luzes. Apagada a televisão. Apagado o mundo ao redor.
Portas que se abriam com furor.
E logo
mais, num instante, o rugido dos milhares de leões do espaço cessara.
Retiraram-se as feras. Restou só o silêncio, apenas o silêncio, o silêncio só.
Tumular silêncio. Os bichos calados. Nem pio de aves, nem trinar de passarinhos,
nem cacarejar de galinhas ou cantar de galos, nem latido de cachorros, nem miar
de gatos. O pasmo da natureza foi geral. Um silêncio devastador.
Tudo em
uma fração mínima de tempo para uma lembrança que não se esvai pelo tempo
afora.
Estáticos
ficamos até que, num ímpeto, saímos para o jardim, para o quintal. A primeira
visão de um enorme espaço vazio com todo o céu à mostra, bem a nossa frente,
onde antes se erguia altaneiro e majestoso um imponente cedro. Um cedro que ali
já se encontrava desde antes dos meus tempos conhecidos, um cedro que já era
alto quando criança eu ainda era. Retorcido fora sobre seu eixo como se fosse
um pescoço de galinha. Torcido e tombado sobre o portão. Da árvore altaneira
restava apenas um tronco de menos de dois metros de altura.
Outras
árvores foram arrancadas com suas raízes profundas e jogadas mais adiante. As
cercas divisórias com a vizinhança estavam todas no chão.
Depois
de minutos que pareceram horas ouviram-se vozes. Vizinhos falando alguma coisa
sussurrada.
Não foi
uma tragédia que ceifasse vidas humanas. Não se falou de feridos também. Os
prejuízos, que foram imensos, limitaram-se tão somente aos materiais.
Telhados
sugados pelo vento do imenso cone invertido que, girando em espiral e rugindo
em velocidade quase supersônica, eram largados em cima de telhados vizinhos.
Algumas
casas, de estruturas mais frágeis, desabaram. Outras, mais antigas, perderam a
sua verticalidade, saíram do prumo, ficaram sem o seu eixo.
Fomos
depois até o Grupo Escolar. Minha irmã Avany era Diretora do Manoel da Silva
Quadros e estava preocupada com o que lá poderia ter acontecido. Encontramos as
portas da sala dos professores escancaradas. Deparamo-nos com um lastimável
estado geral, com livros e cadernos que deveriam ter voado em redemoinho e
assim em espiral estavam deitados e espalhados pelo chão.
E, bem à
vista, ali, no assoalho molhado, em primeiro plano, o primeiro livro que se
ofereceu aos nossos espantados olhos, assim, mais que a sorrir, a rir com seu
título como se fora “un grand finale”:
“Como se formam os tornados”.
Este texto faz parte do livro “O Meu
Lugar”.
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Casa da família Müller de Marcílio Dias atingida por um tornado. |